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Ser fluente é falar como um nativo. Será?

No artigo 7 conceitos de fluência e o que você deveria saber a respeito dela, apresentei algumas definições de “fluência” comumente encontradas na internet e procurei mostrar como elas são ainda bastante vagas e controversas (mesmo entre os profissionais da área de idiomas), dando ensejo aos mais diversos usos e abusos do termo pelo mercado. Ao final do artigo, propus um exercício de reflexão aos leitores: que formulassem seu próprio conceito de fluência a partir de 10 assertivas comumente utilizadas pelo senso-comum, já que, como pretendi deixar claro, a tomada de consciência quanto ao que se busca configura-se em um importante passo para que se possa alcançá-lo.

Vejamos, então, a primeira dessas assertivas: ser fluente é falar como um nativo. Antes de continuar a leitura, convido-lhe à reflexão: qual a sua opinião sobre ela? Você concorda?

EM BUSCA DE RESPOSTAS (E DE UM MODELO)

Em um fórum online, o estudante Renan Q pergunta “… O que é ser fluente num idioma? É falar como um nativo?” Eis algumas respostas selecionadas por mim, transcritas ipsi litteris:

  • bruno: exatamente, é como vc falar como um nativo!
  • Adry: E falar um idioma como falam no pais. Dominando a língua….
  • Gabriel: dominar a ligua e conseguir estabelecer um dialogo normalmente “como se fosse nativo”

Como vemos, tanto o bruno como a Adry e o Gabriel parecem compartilhar a noção ainda bastante comum de que fluência = domínio da língua = falar como um “nativo”. Em outras palavras, tornar-se fluente, de acordo com esse ponto de vista, significa, no caso da língua inglesa, confundir-se com um americano, um inglês, um australiano, um canadense… etc.

Todavia, mesmo que fosse verdadeira, tal afirmação por si só criaria pelo menos um problema de difícil resolução para quem aprende um idioma em um país que o tem como língua estrangeira, como é o caso do Brasil: que modelo do idioma “nativo” teríamos que aprender?

Sabemos muito bem, por vivermos em um país de grandes proporções, que coexistem um grande número de variantes linguísticas do português dentro de nossas fronteiras e esse número aumenta significativamente ao considerarmos as variações existentes em todos os países lusófonos. Tal fato implica diferenças marcantes nos subsistemas que constituem a língua (e.g. o português brasileiro e o português de Portugal), tais como:

  • o léxico e.g. açougue x talho;
  • o morfológico e.g. rapazinho x rapazito;
  • o fonológico e.g. esperança x esp’rança;
  • o sintático e.g. estou pensando x estou a pensar;
  • e o semântico e.g. rapariga (precisa explicar?).

A variação linguística não é um fenômeno restrito somente ao português. Também o inglês, o espanhol, o alemão, enfim, qualquer idioma possui suas variedades dialetais e de registro/estilo em função das pessoas e dos usos que elas fazem da língua, que é viva.

Em termos práticos, para o aprendiz de uma língua estrangeira, a opção por uma variante (e.g. inglês australiano) em detrimento de outra (e.g. inglês americano) implica, dentre outros aspectos, aprender palavras, gírias, expressões, regionalismos e modismos típicos daquela variante e que podem fazer com que falantes de regiões/países diferentes (que falam a mesma língua) tornem-se mutuamente incompreensíveis. Em viagem recente à Irlanda, um professor amigo meu, brasileiro, que se autoproclamava falante de “inglês americano”, confessou a sua dificuldade em compreender qualquer coisa dita pelos irlandeses, expressando sua frustração com um discurso, se é que posso dizer, etnocêntrico (?): aquilo que eles falam lá não é inglês!

O ABANDONO DA IDENTIDADE

É interessante buscarmos compreender a razão desse discurso etnocêntrico. Afinal de contas, como é que um brasileiro, que mora no Brasil, ao se apropriar de uma outra língua, chega ao ponto de discriminar outra variedade da mesma língua, que não é, sequer, a sua?

Ao considerarmos fluência como sendo a capacidade de falar como um “nativo”, estamos consciente ou inconscientemente concordando que, para ser fluente, é necessário abandonar qualquer vestígio da língua materna ao falar a língua-alvo, incorporando a identidade cultural desse idioma à nossa própria identidade. Isso tem implicações diretas em questões afetivas, de autoestima e de pertencimento ao grupo cultural. E devemos aceitar que nem todo mundo está disposto a empreender esse processo.

Uma ex-aluna, em sua terceira (ou quarta?) tentativa de aprender inglês, afirmava odiar quando os professores lhe recomendavam escutar música e assistir seriados em inglês. Ela assumidamente não tinha interesse na primeira, e tinha absoluta rejeição aos últimos. Isso ocasionava nela um verdadeiro bloqueio psicológico ao idioma. Ao comparar-se aos colegas que se desenvolviam mais rapidamente, ela formulou a crença pessoal de que falar inglês estaria condicionado a gostar da cultura anglófona (no caso, a americana e a britânica). O que ela gostava, na verdade, era de escutar MPB e relaxar assistindo uma boa novela brasileira. Forçoso reconhecer que, enquanto pesquisadora de uma universidade, ela de fato não tinha qualquer real necessidade de consumir aquele tipo de cultura em seu tempo livre.

Outro exemplo que me vem à memória é o do Hilton, um brasileiro que conheci quando cursava tecnologia da informação na Austrália, no final dos anos 90. Apesar de fluente em inglês, ele adorava ser reconhecido como brasileiro por sua forma de falar e agir. Segundo ele, isso o separava dos demais, e, de quebra, o ajudava a fazer sucesso com as garotas que, vez ou outra, pediam-lhe que falasse “latino” com elas (é mole?).

Entre adolescentes, assim como em outros tipos de grupos, o falar como um “nativo” pode também significar algum tipo de sanção ou coerção social. Ao longo dos anos, por diversas vezes presenciei cenas em minhas turmas em que um ou outro aluno era tido por metido, exibido, ou boçal pelo restante do grupo, simplesmente por buscar assemelhar-se aos falantes “nativos”. O resultado disso era, não raro, a sanção através de alguma forma de escárnio ou mesmo a punição pelo afastamento dos demais.

DESMISTIFICANDO A FLUÊNCIA

Longe de desencorajar aqueles que porventura almejam falar um idioma como um “nativo”, penso ser este um grande e gratificante desafio ao estudante de qualquer idioma, que implica necessariamente:

  1. a escolha de uma variedade linguística da língua-alvo;
  2. o abandono consciente dos sistemas que caracterizam a língua materna em prol da aquisição dos sistemas da variante escolhida (ao falar a língua-alvo, obviamente);
  3. o esforço constante sobre si mesmo, através de muita reflexão, observação, estudo, imitação, prática, prática e mais prática.
  4. Paciência, muita paciência. Tal processo leva bastante tempo (por vezes, a vida inteira!).

Faz-se necessário, contudo, desmistificarmos o conceito de fluência, separando-o dos ‘achismos’ e trabalhando em prol da formação de um novo senso-comum, melhor orientado e condizente com o mundo atual, globalizado e tecnológico.

A pesquisadora Julia Kalva, ao analisar questões relativas ao uso do inglês como língua franca no Brasil, argumenta que:

a língua acaba sendo veículo de colonialismo, pois acaba por julgar a cultura do outro pela cultura tida como a normal, moderna, tecnológica e de Primeiro Mundo, diferente da cultura local do aluno, que, muitas vezes, é representada como tradicional, exótica, e em desenvolvimento.

Ainda com relação à língua inglesa, acredito não estar revelando nada de novo ao afirmar que o número de falantes não-nativos já supera, em muito, o número de falantes nativos, dada a sua condição atual de língua global. Seria injusto, portanto, associar a fluência em um idioma diretamente ao abandono da identidade do estudante com a sua língua materna, assim como ao “domínio” de apenas uma de suas variantes linguísticas, em geral a economicamente / culturalmente mais dominante.

Além de injusta, tal consideração configura-se, em minha opinião, um grande equívoco. Existem teorias, inclusive, como a do período crítico, que apresentam a hipótese da dificuldade na aquisição da linguagem com o avançar da idade (especialmente após a puberdade), com reflexos diretos no ensino/aprendizagem e na nossa capacidade de falar outro idioma como um “nativo”. Entretanto, tais teorias não chegam a conclusões definitivas, e, mesmo que fossem refutadas, isso seria uma pressão desnecessária sobre os ombros dos aprendizes de línguas adicionais, cujas necessidades imediatas dificilmente incluem serem confundidos com “nativos” do idioma. Além do mais, essa é uma exigência de difícil cumprimento, que pode levar à frustração, ao desânimo e à desistência.

A FLUÊNCIA E A ERA PLANETÁRIA

Em seu livro Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, o filósofo Edgar Morin nos lembra da missão propriamente espiritual da educação, que é ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade.

Para além dos fins mercadológicos imediatistas visando aos ganhos financeiros e pessoais, conforme citei no artigo O que nunca lhe contaram sobre terminar um curso de idiomas em tempo recorde, acredito firmemente que a aquisição de fluência em um idioma adicional (e.g. o inglês) se constitui num grande passo rumo à compreensão humana em um futuro próximo, proporcionando cada vez mais a multiplicação das relações entre pessoas, povos e culturas de diferentes origens. Esse processo já foi iniciado e é esse o ideal que me motiva a continuar trabalhando pela melhoria do ensino de idiomas no Brasil (e no mundo).

A riqueza das trocas culturais consiste justamente na existência da diversidade entre os grupos. Por esse prisma, não devemos nos preocupar em adotar modelos de falantes “nativos” sejam da Espanha, da Inglaterra, da França ou da Alemanha (para citar alguns), que nos remetem a uma visão ainda eurocêntrica de um mundo pós-colonial. A busca pela fluência deve ser, ao contrário, uma busca incessante por compreender o outro, em todos os seus aspectos, assim como nos fazer compreendidos em nossas particularidades.

Certa vez, em Santa Marta, na costa da Colômbia, onde ministrava um curso de formação de professores, sentamos eu, três franceses, duas alemãs, uma colombiana e uma americana no balcão do pub de um albergue. Aos poucos, o grupo, que se encontrava ali pela primeira vez, foi se entrosando e, conforme passavam as horas (e as cervejas!), as conversas iam ficando cada vez mais acaloradas. Falávamos todos em inglês, cada um com suas características particulares. Falávamos sobre tudo. Falávamos sobre a vida e sobre as questões que nos importavam. Falávamos sobre nossos países e nossas diferenças culturais, sobre viagens, sobre política, sobre relacionamentos… Naquele momento de congraçamento espiritual, não havia qualquer espaço para preconceito linguístico. Estávamos verdadeiramente interessados uns nos outros e em nossas histórias de vida. Como profissional de línguas, não pude deixar de perceber que sempre que um de nós esbarrava em alguma dificuldade linguística, recorríamos instintivamente ao espanhol ao invés da língua materna como primeira estratégia para alcançarmos a comunicação. Foram inúmeras as vezes em que os ruídos foram resolvidos assim. Outras vezes, recorríamos, cada um, ao nosso próprio idioma e tentávamos, desta maneira, estabelecer a compreensão do sentido do que o outro queria nos comunicar. Todas as vezes, entretanto, o conhecimento de mundo e da vida daquele grupo foi suficiente para eliminar as barreiras que surgiram. Foi um momento verdadeiramente sublime, verdadeiramente emocionante.

Naquela noite, adentrávamos, mesmo que por breves horas, no que Morin chama de a era planetária. Tínhamos todos a mesma origem, pertencíamos à mesma Terra natal. Enfim, éramos todos Nativos, sem aspas, e com N maiúsculo.

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Marcelo de Cristo

Marcelo de Cristo is an EFL Teacher, ELT Consultant and a life-long learner. He is a Cambridge CELTA Trainer and Oral Examiner (Main Suite and YLs), and has trained teachers in the private and public school sectors in Brazil and other countries around South America and in the UK. He is based in Natal, blogs at www.hashtagelt.com and also runs the Edmodo Brasil community on facebook.

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