Para ser fluente é preciso pensar no idioma?
Pensar é algo natural para todos nós. Segundo a Wikipedia, é uma faculdade do nosso sistema mental através da qual modelamos o mundo para nele podermos transitar e agir segundo a nossa vontade. Pensar vem de fábrica, ou seja, é grátis. Por esse motivo, não se aprende a pensar. Se é assim, por quê então ainda vemos tanta gente por aí dizendo que você só será fluente em um idioma quando conseguir pensar nele?
O SENSO COMUM
Ainda outro dia, estava eu a observar uma professora em uma turma de adolescentes. A aula transcorria tranquila, dentro do que era possível em meio a tantos hormônios tomando conta da sala de aula. Já nos instantes finais, em que se compartilhavam os resultados da atividade sobre “meu app favorito”, um dos adolescentes pergunta, ao perceber as correções feitas pela professora a si e aos colegas: “Teacher, será que um dia a gente vai conseguir falar inglês assim como a senhora?”. A professora, como que surpresa com o questionamento, me olha de relance no fundo da sala por detrás dos alunos e sorri. Eu, é claro, sorrio de volta como quem diz “Manda ver!” Ao que ela então responde: “Vai sim, mas tem que deixar de pensar em português e tentar pensar só em inglês.” Aquela resposta, entretanto, deu azo à outra pergunta “Mas como a gente consegue isso?” e a alguns protestos do tipo “Isso eu já tentei, mas não consigo!”. Em meio à comoção, a professora começou a dar dicas aos alunos sobre a necessidade de assistir filmes e séries em inglês, ler livros, ouvir música, etc. até que soasse o toque e os alunos fossem dispensados em meio ao debate. Resolvi então pensar sobre o “pensar” e sobre o sentido dado ao termo pela professora.
A IMPORTÂNCIA DA LÍNGUA MATERNA
Ao iniciarmos o estudo de uma segunda língua (L2), partimos sempre da primeira (L1) – no nosso caso o português – como referência para a sua compreensão. Não partimos do zero, como os bebês o fazem ao longo de seus três primeiros anos de vida. Já temos arquivado em nossa mente todo um sistema de linguagem verbal e não-verbal que nos permite agir no mundo e interagir com as pessoas à nossa volta para a realização de nossos propósitos. Quando alguém nos mostra a foto de um automóvel, há uma voz interior (o pensamento) que, malgrado a nossa vontade, decodifica a imagem como sendo “carro” e somente a partir daí podemos estabelecer uma nova relação com o objeto, como, por exemplo, a de que a palavra ‘car’ refere-se ao mesmo objeto em inglês. Quer dizer então que não existe um botão mágico que possamos acionar para deixarmos de pensar em português? Não. Nem mesmo se a gente quiser muito? Nem assim (ou pelo menos, não de uma hora para a outra).
“PENSAR EM INGLÊS”
A relação entre pensamento e linguagem é muito estreita. O pensador e pesquisador bielorrusso Lev Vygotsky constatou que o processo mais importante de todo o nosso desenvolvimento como pessoa é justamente a apropriação da linguagem do grupo social em que vivemos. E esse processo, que se consolida ao longo dos anos (e da vida) através do uso diário e do contato com os outros, se torna tão automático que não precisamos pensar sobre ele. Na verdade, nós não pensamos em português. Nós simplesmente pensamos. E o nosso cérebro se encarrega do resto. Por outro lado, quando queremos expressar alguma ideia em uma segunda língua, o percurso é mais ou menos o seguinte:
Todos aqueles que aprendem uma segunda língua após o aprendizado da primeira passam por esse mesmo processo em maior ou menor grau, especialmente até que atinjam estágios mais avançados de domínio do idioma. Para chegarmos ao ponto em que possamos “pensar em inglês” é preciso então que possamos desenvolver novos automatismos, ou seja, a conquista de processos automáticos que possam substituir as etapas 2 e 3 acima por uma outra que seria justamente a expressão da ideia através do pensamento diretamente na segunda língua. O “pensar em inglês” (ou em qualquer outro idioma adicional) ocorrerá, paradoxalmente, quando a exposição e o uso contínuo do novo idioma ao longo do tempo nos propicie a incorporação de suas partes constituintes (léxico, morfologia, sintaxe, fonologia, registros, pragmática etc.), à princípio através do esforço constante sobre nós mesmos, além de muita reflexão, observação, estudo, imitação, prática, prática e mais prática. Incorporar significa trazer todos esses conhecimentos para dentro de nós, do nosso corpo, integrando-os ao nosso próprio ser, até o ponto em que não precisemos sequer “pensar em inglês”, mas simplesmente ‘pensar’.
E QUANTO TEMPO LEVA ESSE PROCESSO?
A resposta será invariavelmente a mesma: o tempo dependerá única e exclusivamente de cada um de nós. A internet está cheia de boas dicas, assim como de dicas “milagrosas” e muitos há que prometem a fluência noutro idioma em um tempo predeterminado, como se isso fosse possível de prever (conforme procurei esclarecer nos meus posts anteriores até aqui). Mas uma coisa é certa: para um processo tão complexo quanto a incorporação de outro idioma ao nosso pensamento, esse tempo dificilmente será um tempo muito curto.
Você já tinha pensado sobre isso? Deixe sua resposta nos comentários.