“É melhor fazer aula com um falante nativo?”
“É melhor fazer aula com um falante nativo?” — pergunta o leigo. E hoje é com ele que vou falar.
Você com certeza já deve ter visto cursos de inglês que anunciam aulas com professores nativos. Será esse de fato um diferencial?
Vamos pensar aqui: se fosse o contrário e você fosse dar aula de português para estrangeiros… Você mesmo, brasileiro, você é falante nativo do português, não é?
Então me diga:
- é verdade que o carioca pronuncia o ‘s’ do plural como ‘x’?
- o que quer dizer ‘denda’?
- resposta rápida: qual a diferença entre ‘palestra’, ‘discurso’, ‘fala’ e ‘pronunciamento’?
- por que eu digo “chuva forte” e “nuvem pesada”, mas não “chuva pesada” e “nuvem forte”?
- de que formas você ensinaria os alunos a responder a um “muito obrigado”?
- você seria capaz de criar situações para que seu aluno entendesse e pusesse em prática a diferença de uso entre “fez” e “fazia”, ou seja, entre o pretérito perfeito e imperfeito?
- que elementos eu preciso conhecer para escrever um texto argumentativo em português?
Provavelmente será difícil para você responder a tudo isso. Você só cresceu falando essa língua. Talvez você até seja muito bom no uso do português e saiba variar entre a informalidade de uma conversa de bar e a formalidade de um relatório escrito para um cliente externo. Mas você não é um professor de fato para saber explicar os comos e os porquês da língua, para criar oportunidades de aprendizado, ou para usar todo um cabedal de conhecimento e habilidades próprios de um professor. Você é “só” nativo.
Pode ser o mesmo caso de americanos, britânicos, australianos e neozelandeses que são anunciados como “professores nativos”.* Claro, há nativos com formação de professor e que realmente têm compromisso com o ensino-aprendizagem. Mas a diferença está aí: nessa qualificação e experiência que eles têm com o ensino de inglês e não no lugar onde cresceram. Passaporte não é currículo.
Assim, quando tentarem lhe vender gato por lebre, pergunte: esse “nativo” aí é professor mesmo ou é só nativo?
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Respostas/Comentários:
- Sim e não. Há 4 formas de pronunciar o ‘s’ em fim de sílaba e palavra no português carioca (também no paraense e em outras localidades) a depender do som que venha depois. Se o som que vier na palavra seguinte for um /s/, como em “os sapos”, o ‘s’ de “os” vai ser pronunciado como /s/. Se o som for de vogal ou de /z/, como em “os avestruzes” ou “os zangões”, o ‘s’ de “os” vai ser pronunciado como /z/. Se o som seguinte for uma consoante sonora que não o ‘z’, como em “os gatos”, o ‘s’ de “os” vai ser pronunciado como o ‘j’ de janela. Para os demais casos, ou seja, consoantes surdas ou silêncio, como “os cachorros”, o ‘s’ de “os” e de “cachorros” vai ser pronunciado como ‘ch’.
- Contração da preposição “dentro” com a preposição ‘de’ e o artigo ‘a’ em português falado: “denda gaveta”. Você pode achar que isso não é digno de ser ensinado, mas seus alunos podem não entender quando ouvirem por causa disso.
- Rá! Vai ter de olhar no dicionário essa aí. E vai ter de decidir quantos dos diversos usos da palavra ‘fala’ você vai incluir nessa explicação sem deixar o aluno tonto.
- As palavras se combinam de formas diferentes em línguas diferentes. Em inglês é “chuva pesada”, mas em português essa combinação de palavras não soa natural pois se usa o “forte”.
- Não sei o que você ensinaria, mas seu aluno vai ouvir “de nada”, “por nada”, “‘Magina”, “Que isso”, “Não tem de quê”, “Obrigada a você!”, etc.
- Veja, não é necessário só saber quando se usa “Ele fez o almoço (ontem/todos os dias até falecer)” e “Ele fazia o almoço (quando morava com a mãe)”, mas criar situações que ajudem o aluno a entender a distinção e praticar.
- Siiiiiim, fala-se muito em nativo para ensinar a “falar”, em especial a famigerada “conversação” (e quem disse que todo mundo sabe ensinar a conversar?), mas na nossa vida também precisamos escrever, persuadir, falar em contextos formais, etc.
*Curiosamente, sul-africanos, nigerianos, indianos e nativos de outros países menos brancos não costumam ser considerados tão “nativos” assim… A busca por essa fugidia natividade é, antes de tudo, racista.